Lembranças das Cruzadas no centro do Rio de Janeiro: você sabia?
O Liceu Literário Português, à avenida Almirante Barroso 2, defronte ao Largo da Carioca possui dois enormes painéis do pintor e ceramista português, Jorge Colaço (1868-1942). Ficam nos dois lados do hall de entrada e qualquer pessoa pode ir ver e fotografar. Não há restrições. Por estar dentro de uma edificação, a obra artística, inaugurada em 1937 parece ter sido feita ontem. Condições perfeitas. A foto de abertura do post é do Google Maps.
A surpresa são os dois painéis, com cerca de 7 metros de comprimento, se referirem a um dos momentos mais emblemáticos da guerra da Reconquista, na Península Ibérica, uma guerra de 700 anos dos católicos contra as tropas de ocupação muçulmanas. Trata-se da conquista de Ceuta, no norte do Marrocos, pelo Infante Dom Henrique no longínquo ano de 1415. Desde aquele momento, os muçulmanos jamais voltaram o controlar aquele pedacinho de 18,5 km2 do norte marroquino. A cidade controla a desembocadura africana do Estreito de Gibraltar. Hoje pertence à Espanha, desde 1640, quando ocorreu a restauração da coroa portuguesa a cidade não aderiu ao novo rei, preferindo ficar com o rei de Espanha.
Jorge Colaço é autor de 20 enormes painéis de azulejos em Portugal, um no palácio de Windsor na Inglaterra, também um em Genebra, em Cuba e em Buenos Aires, e três no Brasil: à entrada do Estádio de São Januário, do Vasco da Gama; no mirante da Granja Guarani, em Teresópolis (meio arruinado, pichado e desgastado pelo tempo); e no Liceu Literário Português. Adicionalmente existem painéis em residências particulares em Teresópolis, Magé, São Paulo, Rio de Janeiro, Santiago de Cuba e Montevidéu.
Em 1415 parece que a metalurgia lusitana era de qualidade muito superior à marroquina. Historicamente se atribui apenas oito portugueses mortos na força naval de invasão e milhares de muçulmanos passados pelo fio do aço português. É uma batalha das Cruzadas entre a Península Ibérica e os muçulmanos não só no norte da África como no litoral do Atlântico, de fato a primeira. A partir da tomada de Ceuta, os portugueses iniciam as navegações e ataques no litoral africano. As velas portuguesas e espanholas traziam enormes cruzes, bem como estavam pintadas no peito dos uniformes portugueses.
Os dois painéis do Liceu fazem parte de um grupo de cinco obras sobre a conquista de Ceuta. Pelo que se pode apurar, os painéis no Rio de Janeiro, tem data de assinatura em 1937, enquanto os portugueses, vêm desde o ano de 1905. Curiosamente a ordem temporal da batalha é invertida, começando pelo painel mais recente e terminando no mais antigo, com uma diferença de 32 anos entre eles.
O primeiro painel, à direita do hall de entrada do Liceu tem uma arte preciosa e complicada. Se vê as tropas portuguesas de costas ou de lado, ainda na Península Ibérica se preparando para atravessar o final do Estreito de Gilbratar a partir da localidade denominada Ourique. Pode-se observar muito bem seus uniformes, armas e cavalos. Clérigos em armas estão ajoelhados rezando. Um único soldado muçulmano jaz morto. O Califado de Granada permaneceria até 1492 no Sul da Espanha. Ceuta é vista do outro lado do mar iluminada por um Sol divino que dificilmente brilharia baixo ao Sul na linha do Equador.
O segundo painel está à esquerda do hall de entrada do Liceu. Parece ser uma imagem metafórica, diferente de todas a outras. O Infante D. Henrique, altivo, armado, sentado numa rocha, suas tropas meras sombras ao fundo. No mar encapelado uma nau segue rumo a Ceuta acompanhada por um anjo portando uma cruz de onde a luz divina ilumina os muçulmanos.
Ao lado dos dois painéis do Liceu existem mais quatro artes menores, o que não existe nos diversos outros painéis do mundo. Mostra dois soldados portugueses e dois soldados muçulmanos. O marroquino a cavalo porta uma bandeira vermelha com a estrela de Davi branca, símbolo de fato utilizado em diversos momentos pelos muçulmanos no Marrocos. Em outros momentos, utilizavam uma estrela de oito pontas feita com a sobreposição de dois quadrados.
O terceiro painel se localiza na Ilha dos Açores, território integrante de Portugal. Mostra naus portuguesas na água, o avanço dos primeiros soldados pela praia e as primeiras mortes de defensores muçulmanos. Um grande combate se inicia na escadaria entre a praia e a cidade com portugueses subindo e muçulmanos descendo ao encontro deles.
O quarto painel, talvez o mais bonito graficamente, é um dos que decora o interior da estação de trens São Bento, na cidade do Porto. Neste temos as tropas portuguesas recém-desembarcadas, combatendo para chegar às muralhas de Ceuta com bandeiras, escadas, lanças e machados de guerra. Muçulmanos mortos e se rendendo estão no quadro.
O quinto está no norte de Portugal, na pequena cidade, praticamente uma aldeia com cerca de 2.500 habitantes chamada Frejães. Ela mostra os soldados portugueses com D. Henrique à frente já sobre as muralhas de Ceuta, os muçulmanos mortos, combatendo e fugindo.
Da forma como o ensino se dá e se deu no Brasil, o fato histórico de Cabral, um capitão de cavalaria, liderar a primeira esquadra da humanidade armada com canhões, com a missão de bombardear e tomar a cidade de Calicute na Índia, dominada pelos muçulmanos, parece mera ficção científica, todavia é a mais pura verdade histórica.
Aos portugueses era impossível reabastecer de água potável e vegetais na ida e volta da Índia, no litoral africano, pois todos os locais com boas baías e água potável estavam dominados pelos muçulmanos e existia mapa absolutamente detalhado disto. Com a utilização também, pela primeira vez do astrolábio, criado pelo rabino e astrônomo Abrãao Zacuto a Escola de Sagres, Cabral também pode, pela primeira vez na história do homem, navegar em mar aberto para qualquer sentido, e não apenas com terra à vista ou no sentido leste-oeste-leste permitido pela observação do Sol. O rabino Zacuto não inventou o astrolábio. O que ele realizou foi modificar e aperfeiçoar o invento permitindo um fácil manuseio, tendo também escrito o manual para navegar com ele. Um dos pontos de inflexão da humanidade.
Cabral cumpriu a missão, realizou o primeiro bombardeio naval de fortificações terrestres da história e com isso quebrou o domínio da rota de especiarias da Índia, para o Egito e depois para Veneza.
A última cruzada de Portugal contra o Marrocos resultou em derrota, em agosto de 1580. Foi a tentativa de conquistar Alcácer-Quibir, envolvendo 23.640 atacantes contra 40.000 defensores. O caráter multinacional pode ser observado pela composição das tropas portuguesas: 12.000 soldados de Portugal, 6.000 muçulmanos de um sultanato que se dividiu (alguns atacaram e alguns defenderam), 2.000 espanhóis, 600 italianos dos Estados Papais e 3.000 alemães e belgas do Sacro Império Romano-Germânico. Foram mortos 9.000 e os outros 16.000 resultaram prisioneiros. Derrota total.
TÁTICA PARA DERROTAR OS MARROQUINOS
Não é possível saber se os desenho de Colaço refletem a verdade histórica de armas e uniformes, ou é tudo liberdade artística de 500 anos depois. Mas existe uma grande curiosidade. Se o leitor observar com cuidado, verá o Infante D. Henrique e vários soldados portugueses, nos diversos painéis retratados com uma proteção de couro no pescoço. Sabe-se, com precisão histórica, que a cimitarra árabe, a espada leve e curva, tinha como golpe principal atingir o pescoço do inimigo e com isso tirÁ-lo de combate imediatamente, com a morte seguindo-se em menos de um minuto. Se as imagens estão corretas, então as tropas do Infante D. Henrique utilizaram uma vantagem espetacular na proteção individual de seus homens, tornando os mortais golpes de espada muçulmanos, absolutamente inúteis. Se o retrato é fiel, então isto foi o que lhes deu a vitória.
Séculos depois, no dia 27/abril/1808 os fuzileiros navais dos Estados Unidos foram atacar os piratas muçulmanos dos Estados Bárbaros, cuja “capital” era Trípoli, na Líbia e utilizaram as proteções no pescoço, sagrando-se vitoriosos. A partir daquele momento, os fuzileiros navais (Marines) americanos seriam apelidados de “leathernecks”, literalmente “pecoços de couro”. O hino da corporação: “Das montanhas de Montezuma às praias de Tripoli”, eternizaram aquele combate.