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O que é preciso saber sobre a ideologia antissemita do ataque contra negros em Búfalo

O assassino de dez (oito negros e dois brancos), Payton Gendron, branco, 18 anos de idade deixou um manifesto com mais de 180 páginas. Ainda está sendo estudado pelo FBI. Os pontos principais são: ele declara não pertencer a nenhum grupo. Afirma que “aprendeu e se formou” pelo conteúdo amplamente disponível na web, desde os 16 anos de idade. Ou seja, era um menor de idade acessando site de teorias de conspiração, negação do Holocausto e nazismo, e isto o fez decidir matar negros. Escola? Professores? Educação familiar? Valores da sociedade? Parece que não tiveram qualquer influência na formação de um homicida, apesar do FBI afirmar que ele era “monitorado” há anos. O ataque foi transmitido ao vivo por uma plataforma de jogos on-line.

Mas matar com qual finalidade? Payton retorna quase às origens do terrorismo: matar como forma de publicidade para as teorias que ele endossa. É complicado as pessoas aceitarem que parte do terrorismo se trata de propaganda ideológica ou propaganda do próprio grupo a fim de recrutar membros. O manifesto dele está sendo lido, as suas ideias e a teoria de conspiração se tornaram muito abertas para qualquer interessado. Portanto, Payton foi bem sucedido.

Payton criou a própria versão da teoria de conspiração denominada “Great Replacement” (A Grande Substituição). Essa bizarrice na abordagem supremacista branca norte-americana, afirma que os judeus retiram os brancos dos EUA e os trocam por negros, tendo isso começado durante o período escravagista. Vários dos grandes teóricos e práticos antissemitas, como Gustavo Barroso, criaram no Brasil e nos EUA uma teoria de conspiração publicada na décad de 1950, onde os judeus controlavam o comércio e depois o tráfico de escravos no mundo. Isso obviamente foi uma tentativa bem-sucedida de remover os muçulmanos africanos e árabes de todo o comércio de escravos africanos que praticavam (no caso de árabes, até os anos 1970 – mil novecentos e setenta mesmo), colocando a culpa nos judeus que sequer podiam colocar os pés em terras do Império Português ou Império Espanhol. Que os loiríssimos suecos tinham a maior frota de navios negreiros do mundo e faturaram horrores com os terrores que impuseram aos negros, é melhor deixar de lado. Deixem de lado também a escravidão branca na Europa e a escravidão chinesa. Culpem os judeus. É mais palatável.

A situação mais estúpida sobre a teoria da Grande Substituição é que não há brancos sumindo em lugar nenhum e negros aparecendo no lugar deles. Mas isso não importa. Payton atualizou: os judeus estão trocando os brancos por imigrantes. Isto é: para esse moleque assassino supremacista branco autodidata, os judeus são “culpados” pelos milhões de imigrantes mexicanos e latinos que entraram nos EUA; os judeus são “culpados”, igualmente, pelos milhões de imigrantes muçulmanos da Síria e de África islâmica que entraram na Europa! Caracas! Será que estes débeis mentais não conseguem enxergar, tamanho o ódio que destilam?

Judeus culpados pela ações de 1,5 bilhões de muçulmanos desafia a sanidade. Mas sempre escutamos isto: os judeus controlam o petróleo do Oriente Médio; os judeus são a ponta de lança do capitalismo nos países árabes; o Estado Islâmico e o Isis são compostos por judeus e sionistas; os judeus roubam as nuvens do Irã. Sempre o mesmo lixo intelectual de propaganda de guerra para vilanizar judeus e atribuir a eles seus próprios pecados.

E se nós não gostamos do George Soros, imaginando que ele financia a esquerda mundial, dentro da teoria da Grande Substituição o Soros é acusado de financiar a destruição dos brancos, no mundo inteiro.

Payton escreveu ainda que “os judeus são o verdadeiro problema e que se lidará com eles no devido tempo”, sendo mais simples, para ele, matar idosos negros num supermercado: idosa que fazia compras pra filha, mulher que fazia compras pro primo que fez quimioterapia, jovem que foi comprar o bolo de aniversário da filha e outros “inimigos dos brancos.”

Este é o quarto ataque confirmado por autores inspirados pela teoria racista e antissemita da Grande Substituição. Os outros foram o ataque em 2018 contra a sinagoga de Pitsburgh que deixou 11 judeus mortos; o ataque em 2019 contra a mesquita na Nova Zelândia com 51 muçulmanos mortos; e o massacre de 2019 do Wal-Mart no Texas que matou 22 pessoas e visava hispânicos.

Somente agora, com a divulgação pelo FBI destes ataques terem sido todos unidos pela teoria da Grande Substituição é que fica claro porque os supremacistas brancos desfilaram, no ano de 2017, Charlottesville, na Virginia, cantando: “os judeus não vão nos substituir”. Até então que sentido fazia os judeus trocarem de lugar com os nazistas americanos? Hoje, está muito claro: os nazistas dos Estados Unidos e de todo o mundo, não vão permitir aos judeus colocar negros, latinos ou muçulmanos no lugar deles, brancos esbirros de Hitler. É de uma estupidez inédita.

Quem criou esta teoria de merda foi mais um da longa lista de antissemitas franceses, Jean Renaud Gabriel Camus, 75, filiado aos grupos socialistas e LGTBs franceses desde o início da vida universitária dele, formado em filosofia em Clemond Ferrand, formado em literatura francesa na Sorbone, mestrado em filosofia em Paris. A Grande Substituição começou a ser pensada por ele em 1996 e foi publicada pela primeira vez, num livro em francês, no ano de 2011.

Ou seja, é uma teoria de filósofo socialista francês. Após a marcha de 2017 na Virgínia, Renaud Camus declarou que não apoia nazistas ou a violência, mas entende o porquê dos americanos estarem irritados por serem substituídos. A teoria da Grande Substituição era inicialmente sobre a entrada dos muçulmanos na Europa “branca”, culpando os judeus e não os próprios muçulmanos, e foi adotada e subvertida pelos neonazistas do White Power com a culpabilidade dos judeus pela substituição nos EUA através de outros imigrantes. Sempre é bom lembrar que o lema francês “liberdade, igualdade e fraternidade”, sempre foi relativo ao francês branco católico. Aos outros, coloniais africanos, latinos e orientais, nenhum dos três jamais lemas se aplicou.

Apenas em 2018, Renaud Camus escreveu um livro inteiramente em inglês, voltado para os norte-americanos. Até então, nenhum de seus três livros sobre o tema tinha sido traduzido ou publicado em outro país. Foi excluído do Twitter em outubro de 2019 quando possuía 59.000 seguidores. Apesar de ser um quadro originalmente socialista,se bandeou para a direita xenofóbica e apoiou o candidato da extrema-direita francesa, Éric Zemmour, nas eleições de 2022.

Este, pela vez dele, acabou de ter sua condenação por negação do Holocausto, confirmada pelo Tribunal de Apelações de Paris.

Não confundir Jean Renaud Gabriel Camus (1946), com o também filósofo franco-argelino Albert Camus (1913-1960). Apesar do mesmo sobrenome, as famílias não são relacionadas.

José Roitberg

José Roitberg é um jornalista brasileiro e pesquisador em história, formado em Filosofia do Ensino sobre o Holocausto, pelo Yad Vashem de Jerusalém.