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Putin de fato quer a Ucrânia?

opinião de José Roitberg, jornalista e pesquisador

Por que Putin e não a Rússia neste título? Apesar da democracia russa com partidos políticos, eleições e congresso, parece que nada emana do povo, apenas de Putin. Nem se sabe se a população russa está a par de 100.000 de seus soldados estarem mobilizados na fronteira com a Ucrânia, nem o que a população pensa disto. Apesar da democracia russa, não chegam ao mundo opiniões nem favoráveis nem contrárias, editoriais de jornais etc. A única notícia que ocorreu paralelamente à movimentação das tropas foi Putin declarar que seu opositor político, dentro da democracia é um terrorista: oficialmente. Talvez possamos dizer que a Rússia de Putin é uma ditadura democrática.

Ontem no Fantástico assisti um quadro, nem posso declarar ter sido um artigo ou uma matéria, com a pretensão de explicar por que, aparentemente, a situação está escalando para um conflito militar. Aliás, não usaram o verbo correto: escalar, ir passo-a-passo rumo à guerra. Dois professores de história, um deles descendente de ucranianos foram entrevistados. E a edição, pinçou uns 30 segundos de falas de cada um, não explicando nada. Isso foi intencional. Edição para desinformar. Não sei se devido a baixa capacidade de entendimento histórico dos editores ou o falso argumento “histérico” da grande mídia de que “o público não vai entender”: então que não explique nada. Tenho certeza de que ambos os professores contaram o que eu vou contar, e até melhor que o meu texto, mas foram cortados, não por uma espada cossaca.

Imaginar que Putin quer o parque industrial ucraniano chega a ser uma bobagem geopolítica.

No momento, o que se vê é o teste das reações do governo Biden. Na época do Trump, quem realizou isso foram a Coreia do Norte e a China. Nos últimos quinze dias é a Rússia e também a Coreia do Norte (certamente se aproveitando do momento) para lançar vários mísseis balísticos. O Japão está de cabelos em pé com isso, pois desde 1945 teme a vingança coreana pelas matanças promovidas pelas tropas do Império Japonês na península coreana além da escravização de coreanos considerados “raça inferior”. A Coreia do Sul não vai realizar a vingança. A do Norte, talvez o faça.

Putin, Trump e Kim Jong praticam a “política do cachorro louco”. É uma modalidade de governar onde os opositores e inimigos nunca podem prever o que irá acontecer em seguida. Por vezes parece que decisões são tomadas no cara-e-coroa. Mas Biden não é assim. Putin tem duas jogadas em uma: verificar até onde os Estados Unidos governados por um democrata pretendem ir e resolver a questão da OTAN – Organização do Tratado do Atlântico Norte. Talvez Putin não esteja recordando a história e deixando de verificar que Woodrow Wilson (Primeira Guerra Mundial), Franklin D. Roosevelt e Harry Truman (Segunda Guerra Mundial), John Kennedy e Lyndon Johnson (Guerra do Vietnã) foram todos presidentes democratas.

Mas a Rússia tem razão em uma das exigências dela: por que precisa continuar a existir a OTAN, criada para se contrapor ao Pacto de Varsóvia comunista, se todo o sistema de governo comunista deixou de existir em 1991, há 31 anos? Os ex-países comunistas europeus, todos estão na OTAN, menos Ucrânia. Diga-se: nenhum destes ex-países comunistas escolheu o comunismo. Todos foram invadidos pela URSS de Stalin em 1939 na vigência do Pacto Molotov, com a Alemanha Nazista de Hitler e depois, novamente entre meados de 1944 e fevereiro de 1945, no avanço soviético contra Berlim. A Hungria tentou se libertar do jugo comunista em 1956 mas foi esmagada pelas tropas do Pacto de Varsóvia.

A OTAN é uma ameaça à Rússia? Provavelmente não. Sendo assim, as demandas de Putin são aparentemente correta mas sob uma perspectiva errada.

Resumindo a Ucrânia de hoje, pode-se passar uma linha ao meio do país, que tem é o segundo maior da Europa, com área equivalente ao Estado de Minas Gerais, mas com o dobro da população, são 44 milhões de habitantes. O lado esquerdo, o voltado para a Europa é a área de agricultura composta por etnias ucraniana, polonesa, romena e outras. O lado direito voltado para a Rússia é composto por etnias russa e ao norte-nordeste, cossaca. É a região industrial do país e separatista desde 2014 quando se iniciou uma guerra civil ucraniana. Esta divisão entre oeste e leste segue os 981 km do curso do rio Dnieper e seus grandes lagos. Aliás a Ucrânia é riquíssima em rios e água doce. A metade oeste do país fala ucraniano e a metade lesta fala russo. Mas é um separatismo estranho. Pegaram em armas para deixarem de ser ucranianos e se incorporarem ao país vizinho, a Rússia. Depois da invasão nazista da Ucrânia em 1941, os cossacos russos se voluntariaram nos exércitos alemães e criaram unidades próprias combatendo os russos soviéticos, bem como a população geral da Ucrânia saudou os nazistas como libertadores do jugo comunista e também se incorporaram como aliados de Hitler, compondo a maioria das unidades de guardas dos campos de concentração nazistas.

A península da Crimeia estava entre as regiões separatistas desta guerra e foi simplesmente invadida, sem oposição, pelas tropas russas. Em fevereiro de 2014. As baixas da anexação da Crimeia pela Rússia foram: um soldado ucraniano morto, dois soldados russos mortos, 80 soldados ucranianos presos, 9.268 soldados ucranianos e 7.050 policiais (principalmente) desertando e se unindo aos 20.000 soldados russos da operação. Talvez Putin esteja imaginando que vitória fácil e sem derramamento de sangue de 2014 possa se repetir em escala maior em 2022. O presidente americano na época era Barack Hussein Obama, democrata, que agiu corretamente não envolvendo norte-americanos nem a OTAN com a Crimeia.

Em minha opinião, os EUA não deveriam entrar numa guerra com a Rússia por metade da Ucrânia. Certamente é a visão de Putin. A alegação dele, em 2014 para invadir a Crimeia foi “proteger os cidadãos etnicamente russos” que vivem lá. Exatamente o mesmo discurso de Adolf Hitler ao anexar a Áustria, o norte da Tchecoslováquia e depois o lado esquerdo da Polônia: proteger os cidadãos etnicamente germânicos.

A decisão de Biden de ameaçar a Rússia com sanções econômicas e até mesmo pessoas a Putin, da mesma forma que fez com o Irã, é uma bizarrice sem mais tamanho. Não se ameaça o bolso do governo com o segundo exército mais equipado do mundo e cheio de bombas atômicas, como se fosse um aiatolá.

A UCRÂNIA INDEPENDENTE É UM PAÍS MUITO NOVO

É impossível entender o que se passa lá entre o país e a Rússia, sem conhecer a total interdependência entre eles. Para isso, precisamos de história.

Devido a suas planícies férteis e dezenas de milhares de quilômetros de rios, a região é habitada desde os neandertais em 43.000 AEC. A cultura neolítica floresceu lá em 4.500 AEC e foi uma importante área durante a Idade do Ferro. Entre 700 e 200 AEC, ou seja, por meio milênio, foi o reino de Scythia, até os gregos de Alexandre o Grande criarem cidades na margem norte do Mar Negro, seguidos historicamente pelos romanos e pelo império bizantino. No início do século 3 EC, os Godos (germânicos) dominaram a região, mas no final do mesmo século foram expulsos pelos nômades Hunos que viviam na própria região. Ao mesmo tempo as tribos búlgaras dominaram o oeste do território e os Kázaros passaram a dominar o leste e sudeste sobrepujando os hunos.

No século 6 EC um povo nômade eslavo, denominado “Antes” ancestral dos ucranianos passou a dominar a região. A imigração de “antes” através dos Balcãs criou a maior parte das nações eslavas. E a imigração para norte, criou também os russos. No ano 602 EC a União Antes colapsou e os povos sobreviveram separados pelos 400 anos seguintes, distanciando-se linguisticamente e culturalmente. Uma das tribos que ficou no oeste da hoje Ucrânia eram os Polianos (não confundir com poloneses), um tribo eslava ocidental. Dominaram desde próximo ao Mar Negro, sem controlar a margem Norte, até o lago Ladoga, na fronteira hoje com a Finlândia. “Polya” na língua eslava antiga significa “campos, estepes”: povo das estepes. E sim, são os ancestrais da etnia polonesa atual. Curiosamente o símbolo da tribo era a suástica girada para o lado direito, 1.700 anos antes do nazismo. As tribos polianas existiam desde o século 2 AEC.

A Rússia não foi criada em Moscou, mas em Kiev. Denominava-se Rússia de Kiev. Kiev é a atual capital da Ucrânia. O nome “Rus de Kiev”, deriva do nome do clã majoritário “Ros” que existia desde o século 6 EC. Entre os séculos 10 e 11 EC a Rússia de Kiev foi o estado mais poderoso da Europa e Kiev já se tornara sua cidade mais importante. A idade de ouro da Rússia de Kiev começou no reino de Vladimir o Grande (980-1015 EC) quando passou seu estado ao cristianismo bizantino. Em 1132 o estado se desintegrou em mais de uma dezena de principados diferentes. Em sua maior extensão territorial foi do Mar Negro, perto da Crimeia (mas sem a península) até quase todo o território hoje da Finlândia, incluindo o principado de Moscou. A Crimeia era controlada pelos Turcos.

Mas aí vem Gengis Khan e a Rússia de Kiev é totalmente destruída no ano de 1240. Dois novos príncipes emergem da confusão e se unem no estado da Galicia-Volhynia, onde 600 anos depois uma imensa parte dos judeus do mundo iria se estabelecer. No século 14 o rei Casimir III da Polônia invade a Galicia-Volhynia. A guerra foi muito longa, de 1340 a 1392. A região foi despopulada e recolonizada como poloneses e lituanos (aliados nesta guerra). Esta aliança evoluiu ao longo dos séculos e formou a União de Lublin em 1569, quando a maior parte do território hoje da Ucrânia, controlado pela Lituânia, passou para o controle polonês. Menos de 50 anos depois emergem os cossacos, uma etnia devota católica ortodoxa que parte para cima dos poloneses.

Na mistura étnica em mongóis e turcos muçulmanos eles sobem rumo norte e chegam a ocupar Moscou, cidade que nunca se recuperou antes da invasão Mongol. A ocupação muçulmana de toda a região escravizou as populações e cerca de 2 milhões de habitantes da Ucrânia e Rússia cristãs, foram capturados e vendidos como escravos pelos turcos muçulmanos. Aconteceram dezenas de expedições de capturas de escravos. Entre 1450 e 1586, foram 86 expedições. De 1600 a 1647, outras 70. No ano de 1688 apenas, 60.000 ucranianos foram capturados e vendidos como escravos pelo Império Turco-Otomano. Apenas no ano de 1783, o Império Russo tem força para expulsar os turcos da Crimeia, isso depois de 6 anos de guerra Russo-Turca. A imperatriz era Catarina a Grande que encorajou a imigração germânica para a Ucrânia e também, em 1790 criou a Zona de Assentamento Judaica, indo do Mar Báltico ao Mar Negro, para onde acorreram judeus de toda a Europa, sob a condição inicial de cidadania e liberdade total. No Holocausto, 1,5 milhões dos descendentes destes judeus seriam mortos à bala por lá.

Na Primeira Guerra Mundial os ucranianos entraram em combate tanto pelo lado Alemão-Austríaco, como pelo lado Russo, apesar de pertencerem ao Império Russo, já demonstrando a total divisão social da região. 250.000 soldados serviram junto às tropas austríacas enquanto 3,5 milhões lutaram ao lado dos russos. Os sobreviventes daqueles 250.000 formaram o Exército Ucraniano da Galícia, que combateu os bolsheviques após a revolução de 1917.

A Primeira Guerra Mundial destruiu o Império Alemão, o Império Austro-Húngaro e o Império Russo. Após a tomada de Moscou pelos revolucionários de Lenin e Kerensky, todas as regiões que compunham o Império Russo declararam suas independências. Assim a República Popular da Ucrânia, primeiro estado nacional a receber o nome “Ucrânia”, foi proclamada em 23/jun/1917 como parte da República Russa (de Kerensky) e no dia 22/jan/1918 declarou nova independência, desta feita separando-se da Rússia. Exatamente um ano depois o governo assina um pacto incluindo a Ucrânia na Rússia Comunista o que leva a uma guerra civil que dura até agosto de 1921, quando as tropas da Rússia Vermelha, comandadas por Leon Trotsky derrotam as tropas nacionalistas ucranianas.

Nos acordos de retirada da Rússia da guerra, em 1917, a Alemanha impõe que seu aliado, a Romênia ocupasse a Bessarabia e a Galícia e Volínia, de onde vem muitos dos imigrantes judeus para as Américas, e principalmente para o Brasil. Por isso os judeus que vem para o Brasil a partir da Bessarabia na década de 1920 são romenos (ou rumanos) e não russos ou ucranianos.

Apenas com o Pacto Molotov, entre a Alemanha Nazista de Hitler e a União Soviética Comunista de Stalin, é que a URSS cria a possibilidade de invadir e anexar territórios que imagina serem seus por direito histórico e que conseguiram através de um pacto (a Bessarabia) e através de defesa militar (Estônia, Lituânia-Latvia e Polônia). A Polônia é invadida pelo oeste e norte pela Alemanha nazista em setembro de 1939 e 10 dias depois pelo Leste, pela União Soviética. É somente a partir deste momento que a Bessarábia, a Estônia, Lituânia, Latvia e metade da Polônia caem sob domínio comunista. E isso permanece até 21/jun/1941 quando Hitler rompe o Pacto Molotov e invade a União Soviética, iniciando a jornada, obrigatoriamente por estes países e regiões recém controladas por Stalin. Este é o motivo pelo qual as tropas nazistas foram saudadas como libertadoras do comunismo nestas regiões e também por toda a Ucrânia.

A Ucrânia atual existe apenas desde o ano de 1991, como país independente.

ARMAS NUCLEARES

Quando a Ucrânia declarou sua independência durante a desintegração da União Soviética, ficou com tudo que a URSS tinha lá dentro, inclusive 1.700 ogivas nucleares (bombas atômicas) e mais de 100 mísseis balísticos intercontinentais, 30 aviões de bombardeio nuclear soviéticos, colocando-se como potência militar nuclear equivalente a China de então: em terceiro ou quarto lugar no mundo.

Até 1993 o país entrou no pacto de não-proliferação de armas nucleares e se comprometeu a desmantelar completamente este arsenal gigantesco sob a supervisão da ONU, da Rússia e dos EUA. E depois disso não surgiu mais nenhuma notícia sobre o assunto. Se alguém quiser saber ser as 1.700 bombas atômicas que estavam em poder da Ucrânia foram de fato contabilizadas e desmanteladas, vai precisar chamar o 007 ou o Tom Cruise, pois não existe informação, fotos, vídeos: nada.

José Roitberg

José Roitberg é um jornalista brasileiro e pesquisador em história, formado em Filosofia do Ensino sobre o Holocausto, pelo Yad Vashem de Jerusalém.